Zumbi dos Palmares e de todos nós

Criado em: 14/05/2020 - 11:24 | Alterado em: 09/06/2020 - 14:36
Olhar

Leia abaixo o texto de Silvia Hunold Lara a propósito de publicações recentes no site da Fundação Cultural Palmares.

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Zumbi dos Palmares e de todos nós

            O site da Fundação Palmares (http://www.palmares.gov.br/) tornou-se um difusor de textos com “propósitos políticos, ideológicos, racialistas e identitários”. As palavras são retiradas de uma das publicações, de autoria de Mayalu Felix. Evidentemente, emprego os termos em sentido inverso - para chamar a atenção que, hoje, uma instituição que nasceu para desenvolver políticas públicas para acabar com o racismo e a discriminação racial no Brasil foi tomada de assalto por um grupo que se pode chamar de bolso-olavista.

            M. Felix emprega aquelas palavras para acusar todos os que discordam de sua opinião. Sim, atrás de uma frágil capa acadêmica, o que ela defende é uma simples opinião. Sem ser pesquisadora na área e esgrimindo referências enganosamente cultas, nega a existência de documentos sobre Palmares e sobre Zumbi para centrar fogo na crítica ao que chama de “mito”. Essa afirmação chega a ser risível para qualquer historiador

            O imenso desconhecimento lhe serve de base para ignorar a diferença entre o Zumbi que se tornou a grande liderança dos Palmares a partir dos anos 1680 e foi morto em 20 de novembro de 1695, e o Zumbi que serve de símbolo para os que lutam contra a desigualdade e o racismo no Brasil. Estudo essa história há décadas e já escrevi livros e artigos sobre o tema. Há milhares de documentos que permitem concluir que o personagem histórico e o símbolo político são faces indissociáveis do modo como o passado se faz presente ao longo do tempo. Foi assim que Palmares e Zumbi foram lembrados pelos movimentos abolicionistas no século XIX e movimentos negros desde então. Movimentos - no plural, pois houve muitos e várias foram as formas de protestar contra a escravidão e a escravização, ao longo do tempo. E também hoje, 13 de maio - efeméride que atualiza o fato de que a luta contra a escravidão ainda não terminou: ela está presente a cada dia, a cada momento em que jovens negros são mortos nas periferias das nossas cidades, em que mulheres negras são aviltadas, em que direitos básicos são negados à maior parcela da população brasileira por discriminação de cor, raça e classe. A incompletude da lei assinada há 132 anos está na raiz da exploração de milhares de homens e mulheres que trabalham como escravos contemporâneos nas fábricas, construções e fazendas desse país.

            Só a arrogância ignorante permite a construção de um castelo de cartas que pode ser chamado de “mito negro afro-brasileiro” (sic). O texto de Felix afronta uma verdade simples, que nem é preciso ser historiadora para constatar: os heróis da pátria, hoje, são justamente esses jovens negros, essas mulheres negras, esses homens negros. Eles sofrem na pele e na carne o resultado de negações políticas, ideologizadas, racistas e identitárias como as acalentadas pela autora. Sim - eles todos (e também eu) temos Zumbi como referência: o que viveu no século XVII, como líder de um dos maiores movimentos de rebeldia da história brasileira, ilumina hoje a urgente necessidade de agir contra as desigualdades e o racismo que ainda governam o Brasil - e de uma maneira cada vez mais insana e violenta
 

Silvia Hunold Lara
Historiadora - UNICAMP
13 de maio de 2020