O projeto “Santana e Bexiga – cotidiano e cultura de trabalhadores urbanos em São Paulo e Rio de Janeiro, entre 1850 e 1930” pretende, em seu escopo mais geral, investigar a diversidade das experiências dos trabalhadores urbanos em recortes cronológicos e espaciais específicos (a região de Santana, no Rio de Janeiro, e a do Bexiga, em São Paulo), centrando as pesquisas nos processos de construção de identidades e solidariedades, as formas de sociabilidade, diálogo e conflito entre trabalhadores de diferentes origens (étnicas, nacionais ou regionais), ofícios ou atividades profissionais, gêneros, religiões e outras diferenciações internas à classe. Por outro lado, o projeto se propõe a acompanhar e discutir a produção e o significado dos conceitos e imagens que recobrem a experiência histórica dos trabalhadores brasileiros reduzidos a figuras homogêneas e freqüentemente colocadas em oposição, como “o” operário, “o” escravo, “o” trabalhador nacional e “o” imigrante, etc.; busca ainda rediscutir alguns paradigmas que atribuíram perfis e características distintas a cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. A estratégia a ser adotada, tendo em vista o caráter coletivo do projeto e a natureza individual das pesquisas em desenvolvimento pelos membros da equipe, reside basicamente na idéia de concentrar a investigação e os esforços interpretativos nas freguesias mencionadas, dentro do período abrangido pelo projeto, de modo a fazer com que os percursos individuais se cruzem em um resultado coletivo. A escolha das freguesias de Santana (Cidade Nova, zona portuária e imediações), no Rio, e Bexiga (Bela Vista e outros bairros ao sul da Praça da Sé), em S. Paulo – ainda que o projeto possa ser posteriormente ampliado para outras regiões, se a pesquisa assim exigir – foi pautada na busca de espaços bem definidos nos quais se possa observar a convivência entre segmentos raciais e étnicos de trabalhadores de diferentes setores e uma concentração de espaços festivos e religiosos. De certa forma, trata-se de delimitar ou mesmo mapear esses espaços, efetuar um reconhecimento numa escala capaz de aproximar-se dos modos de vida dos habitantes, das ações mais cotidianas, para perceber as formas de articulação, convivência e solidariedade ou expressão e solução de conflitos. Em outras palavras, buscar as múltiplas identidades que perpassam aquilo que costumamos nomear como a classe trabalhadora, estudada em sua experiência nas duas principais cidades do país, tomadas freqüentemente de forma estereotipada como ambientes opostos em seus significados e práticas.
Assim, pretende-se ultrapassar a tradicional ruptura que separa escravos e operários na história social do trabalho produzida no Brasil, que descartou as dimensões culturais envolvidas em processos como o das migrações internas (através do tráfico interprovincial de escravos, das migrações do campo para a cidade, nos deslocamentos populacionais entre as várias regiões do país) ou entre diferentes nações (na diáspora africana e nas imigrações européias). Enfatizando consensos e dissensos, identidades e diferenças, continuidades, mudanças e reconfigurações culturais na experiência dos trabalhadores no Brasil, este projeto foi inicialmente definido para abarcar um recorte bem delimitado que se inicia em 1850 e termina nos anos 1920. A idéia era partir do final do tráfico e das agitações escravas de meados do século XIX, percorrendo a crise do final da escravidão para chegar às agitações propriamente operárias do início do século XX.
As principais linhas de investigação e formas de intervenção estão centradas em dois tipos de objetivos a serem alcançados. Os primeiros, de natureza propriamente científica, dizem respeito a questões intelectuais enfrentadas no âmbito das pesquisas envolvidas no projeto. Os segundos consistem na construção de meios – sejam eles dirigidos à potencialização da pesquisa, divulgação de seus resultados ou formação de quadros científicos. Entre os primeiros, destaca-se o propósito de compreender a formação e a experiência das classes trabalhadoras no período, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Toma-se como objeto seus próprios costumes e tradições, sublinhando suas diferenças e os processos de construção de solidariedades e identidades, revendo a interpretação tradicional para tematizar a experiência de escravos, libertos e ex-escravos como elemento central de sua formação no Brasil. A intenção é resgatar a heterogeneidade inerente ao universo cultural que se costumou chamar de “popular”, “nacional” ou “regional” ou, ainda, que está subjacente a recortes de análise mais classistas, acompanhando esforço recente da historiografia brasileira para fazer emergir as diferenças e ambigüidades: procurar as dinâmicas internas a estes recortes, a tessitura de diversas redes de solidariedade, de configuração de múltiplos espaços de sociabilidades e práticas identitárias nem sempre convergentes. Isso implica estudar a importância das variantes étnicas, nacionais e regionais na conformação de dissensos e consensos entre os diferentes segmentos das classes trabalhadoras, desde meados do século XIX até as décadas iniciais do XX, buscando seus significados para a dinâmica interna da classe; significa também discutir o processo de construção e formulação conceitual das homogeneidades que cercam as imagens do trabalhador nacional, do operário, do escravo na produção literária, científica e no pensamento político do período, investigando seus significados históricos e sua apropriação pela historiografia. Finalmente, o projeto pretende criticar a produção de imagens e paradigmas que envolvem a historiografia voltada para o estudo das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, para reinterpretar algumas de suas configurações habituais. Nestes dois contextos, fugindo dos estereótipos, procura-se resgatar os elos de ligação entre as experiências dos trabalhadores escravos e livres buscando superar a ruptura que tem caracterizado a historiografia que identifica a história social do trabalho àquela do trabalho livre ou do movimento operário.
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