Regimes de cidadania: conceitos e diretrizes


1. A Cidadania como Problema

Ao discutir o conceito de cidadania, Frederick Cooper observou que a existência de sujeitos portadores de direitos não cria necessariamente um mundo de iguais. Ou seja, a cidadania não traz em si mesma a igualdade, não leva à superação de diferenças ou de injustiças, nem pressupõe a equivalência entre os cidadãos. Tal enfoque presume então a existência de sujeitos desiguais, situados verticalmente em relações de riqueza, poder e influência social e política.[1] Este Projeto focaliza o processo pelo qual essa desigualdade de direitos se efetiva no Brasil, em termos políticos e sociais, entre os séculos XVIII e XX. O centro da análise está no modo como a legislação define os direitos e as tensões sociais geradas em torno de seus significados e de sua atribuição aos cidadãos. Quem tem ou não direito a quê? Quem pode ou não exercê-lo? Como os direitos são interpretados pelos diferentes sujeitos ou grupos sociais? A resposta a estas questões implica investigar também os significados sociais do arcabouço legal, uma vez que sua normatividade fixa, inventa, restringe ou amplia direitos, assim como desenha a arena de lutas na definição de quem é ou não contemplado pelo aparato legal. As leis são entendidas aqui como parte de um processo que envolve a estruturação, a nomeação e a classificação de categorias sociais que estabelecem diferentes “regimes de cidadania”.

Esta expressão é utilizada como um recurso heurístico, tanto para lidar com o tema da desigualdade de direitos no interior de uma sociedade, quanto para apreender sua variação ao longo do tempo, bem como para abordar noções de equilíbrio, flexibilidade e instabilidade relacionadas aos diferentes graus de inclusão e exclusão, e de composição. Assim, ela engloba “a mistura, a montagem, a expansão e a erosão simultâneas, a disjunção, a disparidade e a ilegalidade” em relação à cidadania e à distribuição dos direitos.[2] Em outros termos, a expressão ajuda a desestabilizar esquemas clássicos que definem a cidadania pela distinção canônica entre direitos civis, políticos e sociais, apresentados em termos mais lógicos e sequenciais do que históricos. Tal tripartição linear, entronizada por T. H. Marshall,[3] pressupõe, como observa James Holston, um “esquema histórico progressivo, cumulativo e fiel à lei”.[4] Nesse sentido, o conceito de “regimes de cidadania” propõe que os direitos só podem ser entendidos como fenômeno histórico ao deixarem de ser aprisionados em categorias fixas e de obedecer a qualquer linha evolutiva. Assim, tais “regimes” são flexíveis e inseparáveis de distinções nacionais, raciais, sexuais, religiosas e de classe; dependem do senso de pertencimento de pessoas e grupos sociais; ultrapassam as relações rígidas dos indivíduos com o Estado e com a lei; e alternam-se de acordo com os deslocamentos populacionais.[5]

Os “regimes de cidadania” compreendem, como se observou, um universo amplo de direitos desiguais, flexíveis e instáveis, estando em permanente tensão entre as promessas de universalidade, de um lado, e os compromissos com as diferenças e as desigualdades, de outro. O conceito permite, portanto, evitar o risco da indistinção entre sujeitos situados em múltiplas formas de pertencimento, irredutíveis à concepção reificada de igualdade formal perante a lei. Do mesmo modo, escapa à essencialização de classe, gênero e raça, questionando noções de identidades fixas, imutáveis e apartadas das relações sociais em que se inserem.[6]

Tais regimes estão expressos em códigos jurídicos e práticas legais, tanto cravados em normas escritas e positivas quanto em direitos costumeiros. O processo de institucionalização dos significados sociais dos direitos inscritos na legislação é em si conflituoso, daí derivando a necessidade de investigar as ambiguidades que carrega. É nesse plano de ambivalências e incertezas que a noção de “regimes de cidadania” alcança seu potencial heurístico, na medida em que lida com “noções de mais e de menos, de grau, de mescla, de composto e de equilíbrio sempre provisório e instável”.[7]

Ademais, o termo implica considerar o lugar da agência dos sujeitos nos processos de produção e distribuição assimétrica dos direitos. Os estudos no campo da história social têm mostrado a importância do direito, das leis e dos sistemas jurídicos na ampliação da cidadania de diferentes grupos sociais. No entanto, não têm recebido a mesma ênfase os processos históricos em que a criação de normas legais, a sua aplicação e as práticas cotidianas dos tribunais e do aparato policial também perpetuam e produzem desigualdades e diferenças entre esses mesmos grupos. Por isso, cabe explorar as porosidades do mundo legal e jurídico por meio da investigação sobre as motivações e as disputas que levaram à criação, à supressão e à ampliação de leis e direitos, atentando para as maneiras pelas quais elas contribuíram para o alargamento e estreitamento da cidadania expressa em textos legais. Cumpre também examinar as distintas formas de apropriação que os subalternos fizeram de tais textos, na perspectiva de que as leis e as instituições jurídicas compõem uma arena sempre instável de disputas políticas.[8]

Se as normas legais podem funcionar como instrumento de dominação de classe, nem por isso deixam de ser interpretadas diferentemente de acordo com os grupos e os interesses em disputa, em contextos específicos e de acordo com visões conflitantes, inclusivas e excludentes de direitos. Em sentido lato, as normas jurídicas vigentes numa sociedade (sejam consuetudinárias ou formalmente codificadas) instituem e delimitam significados sociais gerais em torno dos quais ocorrem os conflitos sociais. Assim, o Projeto também trata de investigar as possibilidades e os limites dos direitos sociais e políticos, produzidos e interpretados no interior de múltiplos campos de lutas e debates, que disputam lugares de pertencimento a alguma coletividade política.

Ao considerar esse aspecto invariavelmente cambiante dos “regimes de cidadania”, para além de qualquer distinção prévia e categórica entre sujeitos contemplados e excluídos de direitos, as pesquisas aqui reunidas procuram explorar o modo como estas definições são desenhadas, o que afirmam e o que deixam implícito ou escondem, abrindo zonas cinzentas e pouco definidas de pertencimento e exclusão. Isto porque, ainda que expresso em normas legais, a definição de quem está “dentro” e “fora” do universo da cidadania e dos direitos se encontra sujeita a variações contextuais, disputas de significados, noções de pertença social, entre outros fatores. É necessário frisar, mais uma vez, que o problema remete aos dilemas entre o princípio universalista dos direitos, que não contempla formalmente distinções sociais, e as lutas pelo reconhecimento da diversidade nos processos de inclusão. Portanto, os “regimes de cidadania” se inscrevem nessa tensão entre o ideal de universidade e a percepção das diferenças, entre a igualdade formal e as desigualdades.

Por isso, este Projeto interpela a cidadania a contrapelo e enfatiza a questão dos direitos e das leis como fenômeno histórico que envolve dimensões de classe, raça e gênero, na medida em que são, sobretudo, em torno desses marcadores que se desenvolvem os processos de produção de diferenças e de inclusão e exclusão.[9] As leis, o direito e as instituições jurídicas estão diretamente ligados às hierarquias e às desigualdades sociais e políticas, de modo que é próprio dos “regimes de cidadania” tanto capacitar quanto inibir as possibilidades de reivindicação de direitos.[10] Ao mesmo tempo, oferecem aos diversos sujeitos e grupos sociais as condições para a contestação, de acordo com seu lugar social, racial e de gênero. Nas palavras de Frederick Cooper, “a cidadania certamente exclui, mas o debate sobre os critérios de inclusão é interno ao construto”.[11] Se a “cidadania é uma medida de diferença”,[12] que cria cidadãos “de mais e de menos”, ou seja, fixa gradações de direitos e os distribui de maneira desigual, por outro lado é também uma questão de pertencimento.

Assim definida, a expressão “regimes de cidadania” congrega os principais elementos que norteiam as investigações aqui propostas: preside sua temática mais ampla, agrega e norteia as pesquisas individuais. Simultaneamente, ela é também objeto de reflexão e análise. Trata-se de inquirir, a cada momento, a respeito da eficácia heurística dessas definições e das perguntas que ela coloca. Por isso mesmo, a investigação que se pretende desenvolver aqui é eminentemente histórica.

Ela parte da constatação de que certas narrativas sobre as revoluções do final do século XVIII, especialmente a Revolução Americana e a Francesa, tenderam a criar um modelo de direitos universais que levou à construção de dois pressupostos: 1) as sociedades antes do final do século XVIII eram marcadas pela ausência de direitos; 2) as sociedades ocidentais caminharam progressivamente nos séculos XIX e XX rumo à universalização dos direitos, emergindo daí um ideário jurídico liberal que formalmente estabelece a igualdade de todos perante a lei. No interior de parte do próprio ideário liberal, a separação entre direitos civis e políticos se desdobrou na divisão entre sujeitos com franquias eleitorais e, assim, em condições de participar da vida política, e cidadãos passivos. Desse modo, “a vigência das instituições liberais (...) não teve como condição necessária a cidadania plena para toda a população de um país”.[13] Acrescente-se que a narrativa da universalidade abstrata criou modelos interpretativos que excluem, por exemplo, as disputas em torno de direitos costumeiros em qualquer período histórico e pouco atentaram para as formas legais e extralegais de supressão de direitos (especialmente nos séculos XIX e XX) para vastas parcelas da população.

Alguns exemplos das ambiguidades entre a promessa de universalidade e os processos históricos de exclusão de direitos podem ser mencionados. No caso da Revolução Americana, como destacam Peter Linebaugh e Marcus Rediker, a Constituição dos Estados Unidos “fortaleceu a instituição da escravidão ampliando o comércio de escravos, tomando providências para o retorno de escravos fugidos e dando poder político nacional à classe dos donos de plantation”.[14] Quanto à França, apesar de circunscrito historicamente, o paradigma que emergiu no final do século XVIII, expresso na “Declaração dos Direitos do Homem”, fez com que percepções contemporâneas sobre direitos se projetassem não só para períodos mais recuados, mas também para as lutas por direitos de um conjunto amplo de atores sociais, como trabalhadores escravos e livres, mulheres, negros, etc. Entretanto, apesar de formulados em uma linguagem universalista, os direitos anunciados na Declaração eram muito menos inclusivos: excluía os sem propriedade, os escravos, os negros livres, os criados, as minorias religiosas e as mulheres - todos vistos no século XVIII como destituídos de autonomia e independência.[15] A Revolução Francesa não aboliu a escravidão africana nas colônias do Caribe, e o fim definitivo do cativeiro ocorreu apenas em meados do oitocentos no âmbito das revoluções de 1848.[16]

Os direitos para as mulheres, por sua vez, permaneceriam bastante restritos por um longo período.[17] Considerando, como sugerem Angela Davis e Anne McClintock, que as condições de raça, gênero e classe se entrelaçam, o que resulta em posições sociais, experiências e expectativas diversas, os direitos das mulheres extrapolam qualquer perspectiva de universalidade.[18] Assim, a particularidade das lutas pelos direitos das mulheres no mundo do trabalho ou as normas impostas especificamente a esse grupo nas sociedades coloniais têm contribuído decisivamente para desnaturalizar a universalidade imposta pela concepção iluminista.[19]

Ao remeter ao ideário liberal iluminista, Eric Hobsbawm advertiu que “os ‘direitos’, digam alguns filósofos o que quiserem, não são abstratos, universais e imutáveis”. Ao desnaturalizar tais percepções, ele considera que direitos implicam a reivindicação e o reconhecimento de prerrogativas reconhecidas pela lei positiva ou baseadas “num conjunto de convicções amplamente aceito”, mesmo que não inscrito em normas legais, como os direitos costumeiros. Observa também que acontece “com frequência de diversos conjuntos de convicções sobre direitos coexistirem numa sociedade, e poderem ser conflitantes”, além de variar no tempo e no espaço, o que remete mais uma vez ao conceito de regimes de cidadania.[20] Assim, pensar os direitos significa situá-los dentro de marcos jurídicos e legais, assim como no interior das tradições em que estes se inserem. Por isso, termos idênticos ou muito similares ganham sentidos diversos a depender de quem os enuncia e dos contextos históricos em que são produzidos ou interpretados.

Ainda a guisa de exemplo, as batalhas travadas pelos movimentos de trabalhadores por direitos sociais são paradigmáticas neste sentido. Os trabalhadores cumpriram papel fundamental na adoção dos princípios iluministas em diferentes sociedades e ampliaram seus significados, fundindo direitos humanos essenciais com reivindicação social.[21] Por um lado, o século XIX consolidou a noção essencialmente política de cidadania alicerçada nos direitos do indivíduo abstrato - sem dúvida, uma novidade histórica - e na propriedade. Por outro, emergiram lutas para ampliar a “democracia política”, de que é exemplo o cartismo liderado pelo movimento operário inglês, e para defender o direito de organização e livre manifestação dos trabalhadores por meio de uma linguagem de direitos extraída seletivamente do próprio ideário liberal.[22]

Entretanto, seria um erro hipostasiar tal ideário. Evidentemente, a plasticidade de seus argumentos de universalidade e a “maleabilidade inerente aos seus princípios ou valores” abriram brechas para o avanço da cidadania e da democracia em termos mais amplos, conforme as exemplificações acima sugerem.[23] Uma das vertentes mais destacadas da ortodoxia liberal está na concepção utilitarista de separação institucional da sociedade em “esferas” econômicas e política, tendo no assim chamado mercado auto-regulável o princípio organizador de bens e direitos.[24] No entanto, desde que se impôs no início do século XIX, o utilitarismo pautou a questão das escolhas e da agência dos indivíduos na chave da defesa da igualdade formal de oportunidades, indiferente às “oportunidades reais” das pessoas e dos grupos sociais “persistentemente destituídos”, “sem demonstrar nenhum interesse direto por liberdade, direitos, criatividade ou condições reais de vida”.[25] Ao polemizar com essa tradição que opera com o princípio abstrato e universalizante do homus economicus, que separa radicalmente sociedade e Estado e os reifica,[26] autores e textos clássicos da história social analisaram o problema dos direitos na imbricação destes com o mercado, os costumes, a lei, os tribunais, todos entendidos como espaços de conflito.[27]

Assim, o ponto de partida deste Projeto está em problematizar os regimes de cidadania tanto em momentos de expansão quanto de retração de conquistas sociais e políticas, levando em consideração as ambiguidades das leis (positivas ou consuetudinárias) e das instituições jurídicas nos termos apresentados acima. Com isso, seguimos para o exame das relações entre os múltiplos significados dos direitos em suas articulações com as leis, destacando a ação histórica de homens e mulheres diversos, em diferentes contextos e conjunturas. Cumpre, portanto, investigar os equilíbrios de força e as lutas para a construção e definição de critérios políticos e das classificações sociais que permearam o acesso ou a exclusão a uma série de direitos, seja na esfera individual, seja na coletiva.

2. Circunscrições

Para a investigação do tema na perspectiva da história social, a periodização não pode estar pautada pelos “cânones” das abordagens mais tradicionais do liberalismo e precisa ser, necessariamente, problematizada. A larga cronologia aqui proposta, que se estende de 1750 à década de 1970, permite examinar os horizontes em que, no Brasil, liberdade e escravidão estão em disputa. Ela permite escapar das armadilhas que aprisionam os problemas aqui enunciados à concepção de uma passagem linear e inelutável do “trabalho escravo ao trabalho livre”, termos muitas vezes formulados de maneira binária e dicotômica. Nesta perspectiva, as tensões entre escravidão e liberdade estarão presentes em todas as pesquisas individuais abarcadas pelo Projeto, não apenas como demarcações cronológicas, mas como problemas históricos e historiográficos que circunscrevem as disputas em torno dos direitos.

Este alargamento da periodização possibilita, de um lado, abarcar o tema dos direitos desde o Antigo Regime, passando pelo século XIX e pelo pós-abolição, com base em experiências dos sujeitos sociais que viveram o mundo da escravidão e da liberdade. De outro, permite examinar como a escravidão tornou-se uma metáfora importante nos debates acerca dos direitos para além do imediato pós-abolição. Assim, passando por diferentes conjunturas, tal periodização torna possível evitar as já referidas dicotomias simplificadoras entre escravidão e liberdade, abrindo espaço para investigar zonas pontilhadas por ambiguidades, incertezas, complementaridades, misturas, mesclando situações intermediárias, instáveis e sem delimitações facilmente discerníveis ou apreendidas como se constituíssem uma realidade dada. Permite, assim, desnaturalizar o “paradigma da cidadania” forjado no interior de parte do ideário jurídico-político do liberalismo.

Embora as pesquisas aqui reunidas tenham como foco de análise a história do Brasil, não significa que estarão limitadas à fronteira nacional (ou ao que esta viria a se tornar). Os contornos espaciais dos estudos apresentados mais adiante são definidos pelos problemas e questionamentos que emergem da análise das fontes. Na descrição das pesquisas individuais, será possível perceber diversas referências a eventos, ideias e conexões globais que se fazem necessárias para melhor delimitar os objetos de investigação. Desse modo, todos os pesquisadores utilizam escalas de análise variadas, evitando a falsa oposição entre micro e macro-história. Para utilizar uma metáfora frequente nos últimos anos no campo historiográfico, segundo Jacques Revel, “variar a focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no visor, e sim modificar sua forma e sua trama”.[28]   

3. O contexto institucional e o diferencial da pesquisa

Tal abordagem distingue-se sensivelmente dos projetos coletivos anteriores desenvolvidos no âmbito do CECULT (Centro de Pesquisa em História Social da Cultura – UNICAMP). Criado em 1995, este centro destaca-se no cenário nacional por larga e efetiva tradição de trabalho coletivo. Os primeiros projetos problematizaram as noções de identidade nacional e de formação da nação que, ao postularem igualdades e homogeneidades, transformavam ex-escravos, trabalhadores pobres e imigrantes em “classes perigosas”.[29] O tema da cidadania constituía então um “pano de fundo”, já que tais categorias acabavam por constituir um todo indistinto de cidadãos.

A partir da identificação dos sujeitos históricos apagados pela ideia de nação una e indivisa, o escopo das pesquisas seguintes passou a conferir ênfase aos processos históricos nos quais os trabalhadores se constituíram como sujeitos políticos. O primeiro passo foi investigar as experiências dos trabalhadores (escravos ou livres, nacionais ou imigrantes, homens ou mulheres, brancos, negros ou índios) e o modo como atribuíam significados políticos a diferentes aspectos de seu cotidiano, tanto nos locais de trabalho quanto nos espaços de sociabilidade e lazer, assim como nos conflitos com senhores, patrões e autoridades públicas.[30] As pesquisas mostraram como tradições, costumes e identidades compartilhadas formaram a base para a reivindicação de direitos e para a formação de grupos e associações (religiosas, recreativas, de apoio mútuo, sindicais). Ao mesmo tempo, indicaram a necessidade de realizar uma análise mais aprofundada sobre as relações de trabalho em situações e contextos em que estão presentes diferentes formas de exploração do trabalho, questionando as dicotomias entre liberdade e escravidão. Este foi o tema que orientou as investigações coletivas e individuais dos pesquisadores do centro nos últimos cinco anos.[31]

Evidentemente, o Projeto que agora se desenha tem interfaces com os que o precederam, mas apresenta inovações que merecem ser destacadas. Ao propor o tema dos direitos sociais na perspectiva dos regimes de cidadania, o acento recai menos na luta e na conquista de direitos por parte dos subalternos e mais nas formas políticas contraditórias, intermediárias e movediças da definição dos diversos sujeitos portadores de prerrogativas e direitos. Assim, a proposta deste Projeto abre suas lentes para focalizar a pluralidade dos sujeitos nas relações sociais e buscar conferir ao conceito de cidadania um estatuto histórico que possa ir além das categorias apriorísticas, universais e lineares comuns em abordagens tradicionais, a partir do exame de contextos específicos e sempre de acordo com as múltiplas dinâmicas do exercício do poder. Tais condicionamentos históricos balizados por conjunturas muito particulares exigem, ao mesmo tempo, um tratamento de longa duração para alcançarmos uma melhor compreensão dos processos de construção da cidadania. Aproveitando o conhecimento acumulado no desenvolvimento dos projetos anteriores, entendemos que a cidadania não pode ser pensada apenas a partir das normas legais (costumeiras ou positivas), das instituições jurídicas e das ideias políticas, mas das assimetrias e disputas de classe, raça e gênero e das formas pelas quais os sujeitos interpelam os códigos legais e os sistemas de classificação social que procuram definir seus respectivos lugares na distribuição sempre desigual de direitos.

Assim, o Projeto trata a questão da cidadania levando em consideração os processos de inclusão e exclusão de vastos conjuntos de homens e mulheres com base em marcadores de raça, gênero e classe, sem, contudo, fazer incidir seu recorte apenas em trabalhadores, como nas pesquisas coletivas anteriores. Trata-se, agora, de interpelar como diversos categorias e grupos sociais constroem suas identidades em diferentes contextos e espaços de sociabilidade e como foram submetidos a diversos regimes de cidadania ou reivindicaram direitos em situações específicas, recorrendo a estratégias variadas.

Por fim, o Projeto aproveita muito do adensamento do debate sobre as relações entre escravidão e liberdade, desenvolvido no âmbito do último Projeto Temático sediado no CECULT (concluído em março de 2019). A investigação das fronteiras instáveis entre a escravidão e a liberdade, tanto nas relações sociais quanto nos debates legais e jurídicos ao longo dos séculos XIX e XX, nos força a aguçar o olhar para as zonas cinzentas que se abrem para uma renovada abordagem das clivagens que se abrigam sob o manto da noção liberal de cidadania.

Não é demais notar, ainda, que o que se propõe no âmbito deste Projeto beneficia-se da longa trajetória do CECULT em sediar projetos coletivos, que integram pesquisas individuais e atividades coletivas, empreendidas pelos pesquisadores docentes e alunos de graduação, pós-graduação e pós-doutorandos. São esses projetos de maior envergadura que fornecem as temáticas capazes de aglutinar os participantes das equipes dos diversos projetos em andamento no centro, resultando em uma produção significativa em termos quantitativos mas que também se destaca no cenário nacional e é internacionalmente reconhecida.

Este Projeto entrelaça, assim, várias pesquisas individuais, abrangendo diversos aspectos que visam obter não apenas os necessários resultados acadêmicos (na forma de artigos, livros, etc), mas também envolvem a realização de atividades coletivas, como a realização de seminários, a produção de instrumentos de pesquisa e de coletâneas, bem como a formação de pesquisadores em níveis que vão da graduação ao pós-doutorado.

 

[1] Frederick Cooper. Citizenship, Inequality, and Difference: Historical Perspectives. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2018, p. 1-26.
[2] James Holston. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 50.
[3] T. H. Marshall. Class, Citizenship and Social Development. Chicago: University of Chicago Press, 1977.
[4] Holston, Cidadania insurgente, p. 50.
[5] Cooper, Citizenship.
[6] Ver, por exemplo, as contribuições em Brasílio Sallum Jr., Lilia Moritz Schwarz, Diana Vidal e Afrânio Catani (orgs.). Identidades. São Paulo: Edusp, 2016; mais recentemente, Asa Haider. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
[7] François Hartog. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 11.
[8] E. P. Thompson. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
[9] George Reid Andrews. “Desigualdade: raça, classe e gênero”. In: George Reid Andrews e Alejandro de la Fuente (orgs.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução. Buenos Aires: CLACSO, 2018.
[10] Brodwyn Fisher; Keila Grinberg; Hebe Mattos. “Direito, silêncio e racialização: das desigualdades na história afro-brasileira”. In: Andrews e de la Fuente (orgs.), Estudos afro-latino-americanos, p. 163.
[11] Cooper, Citizenship, p. 13.
[12] Holston, Cidadania insurgente, p. 22.
[13] Maria Stella Bresciani. “Liberalismo e republicanismo no Brasil”. In: Fernando Teixeira da Silva e et al (orgs.). República, liberalismo, cidadania. Piracicaba: Editora da Unimep, 2003, p. 27.
[14] Peter Linebaugh e Marcus Rediker. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do atlântico revolucionário. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 254.

[15] Lynn Hunt. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ver também Michel-Roph Trouillot, Silencing the Past. Power and the Production of History, Boston: Beacon Press, 1995, p. 74-83.
[16] A destacada exceção foi São Domingos que, não apenas proclamou o fim da escravidão no final do século XVIII, como concretizou sua independência frente ao governo francês, rompendo com as amarras de liberdade política em relação à metrópole e instaurando igualdade civil entre os cidadãos perante as leis. Laurent Dubois. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2004.
[17] Na sociedade vitoriana, legislação e costumes reforçaram a imagem das mulheres como inferiores aos homens, destinadas à vida doméstica de esposas e mães, sem capacidade para exercer funções públicas, direito de voto e igualdade nas disputas envolvendo divórcio, etc. Peter Gay. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média, 1815-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 68-9.
[18] Angela Davis. Mulheres, raça e classe. Trad. São Paulo: Boitempo, 2016; Anne McClintock. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 15.
[19] Sobre os direitos das mulheres no mundo do trabalho, ver Glaucia Fraccaro. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2018. A importância da perspectiva de gênero informando os estudos sobre o colonialismo em África pode ser observada em Jeanne Marie Penvenne. “Seeking the Factory for Women: Mozambican Urbanization in the Late Colonial Era.” Journal of Urban History, 23 (3), 1997, p. 342-379.
[20] Eric Hobsbawm. “O operariado e os direitos humanos”. Mundos do Trabalho. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 409 e 411.
[21] Idem, p. 428.
[22] Dorothy Thompson. The Chartists: Popular Politics in the Industrial Revolution. New York: Pantheon, 1984. Ver também William H. Sewell Jr. Work and Revolution in France: The Language of Labor from the Old Regime to 1848. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
[23] Bresciani. “Liberalismo e republicanismo no Brasil”, p. 28.
[24] Karl Polanyi. A grande transformação - as origens de nossa época. Trad. Rio de Janeiro: Campus, 2000. O “utilitarismo” é entendido aqui como vertente da economia política que “privilegia a busca do ganho pecuniário sobre todas as outras motivações humanas (...), reduzindo a sociedade a um núcleo de transações econômicas”. Tim Rogan. The Moral Economists: R. H. Tawney, Karl Polanyi, E. P. Thompson, and the Critique of Capitalism. Princeton-Oxford: Princeton University Press, 2017 [versão kindle, posição 154].
[25]  Amartya Sen. Desenvolvimento como liberdade. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 201, p. 82, 89 e 107.
[26] A exemplo de F. A. Hayek. O caminho da servidão. Trad. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. Hayek foi um dos apóstolos do “Estado mínimo” e ideólogo do neoliberalismo.
[27] Entre muitas outras referências, uma que se destaca é o livro de E. P. Thompson. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[28] Jacques Revel. “Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado” Revista Brasileira de Educação, 15 (45), 2010, p. 438. Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel. “Introduction: Space and Scale in Transnational History”. The International History Review, 33 (4), dez. 2011, p. 573-584. Natalie Zemon Davis. “Decentering History: Local Stories and Cultural Crossings in a Global World”. History and Theory, 50, 2011, p. 188-202. Para uma defesa da história conectada, ver Giovanni Levi. “Frail Frontiers?” Past and Present, 14, 2019, p. 37-49.
[29] Cultura Popular: um problema histórico e seus desafios. Projeto Integrado de Pesquisa, CNPq, de 08/1995 a 01/1998; Cultura e diversidade no Brasil: para além da história da identidade nacional (séculos XIX e XX). Programa Núcleos de Excelência-PRONEX, FINEP/CNPq, de 02/1998 a 11/2004; e Santana e Bexiga. Cotidiano e cultura de trabalhadores urbanos em São Paulo e Rio de Janeiro entre 1870 e 1930. Projeto Temático FAPESP, de 01/2001 a 12/2005.
[30] Trabalhadores no Brasil: Identidades, Direitos e Política (Séculos XVII a XX). Projeto Temático FAPESP, de 08/2007 a 07/2012.
[31] Entre a escravidão e o fardo da liberdade: os trabalhadores e as formas de exploração do trabalho em perspectiva histórica. Projeto Temático FAPESP, de 04/2014 a 03/2019.